Nascido em 1989 na Faculdade de Teatro da Universidade Federal
da Bahia, Los Catedrásticos surgiu como um anti-besteirol bem à época em que o
axé music ganhava força na Bahia. Naquele primeiro esboço de espetáculo as
letras das canções eram recitadas em meio a palavras de ordem e ao jargão
típico da militância. Então o alvo da sátira a princípio era o mundo acadêmico
em sua por isso Los Catedrásticos.
“Los Catedrásticos é o primeiro espetáculo baiano criado por um
grupo, que movimentou a combinação de polêmica, platéias e temporadas
ininterruptas em proporções solidamente profissionais. Ainda hoje, mais de 20
anos depois, Bofetada, Cafajestes e Catedrásticos compõem o marco referencial
de excelência, profissionalismo, sucesso de público, e repercussão do teatro
baiano no contexto nacional”, explica Paulo Dourado, diretor do espetáculo.
Espetáculos
O Recital da Novíssima Poesia Bahiana foi
o título do espetáculo que marcou a estreia de Los Catedrásticos em 1989. Sua criação
se deu no contexto de uma das muitas greves das universidades públicas, como
uma entre outras atividades artísticas de um almoço realizado para arrecadar
recursos para o “fundo de greve”. Em sua segunda temporada, o Recital
transmutou-se em Novíssimo Recital da
Poesia Bahiana que ainda viria a ter vários outros títulos durante os seus
mais de quatro anos de temporada ininterrupta (NPB – Novíssima Poesia Bahiana; NPB; NPB – Uma Ópera Buffa; NPB
Remasterizada – Incluindo Novos Sucessos; A Comédia Bahiana e Enfim o Fim),
correspondendo sempre a atualizações ou outras mudanças de roteiro.
De 1989 a 1992, o elenco fixo original trazia Cyria Coentro,
Jackyson Costa, Meran Vargens, Ricardo Bittencourt, na temporada seguinte, de
1997 a 2001, as apresentações tinham à frente os mesmo atores com exceção de Meran
Vargens. Quem passou a integrar o grupo foi Maria Menezes e o ator Zéu Britto,
com substituições de João Miguel, Najla Andrade, Aycha Marques.
Imaginária
Mente – O
público poderá ainda conferir no foyer do Teatro Jorge Amado uma exposição com
a trajetória do Los Catedrásticos nesses 23 anos de existência. Todo o acervo
de textos, fotografias e vídeos estarão ao alcance do público na mostra
batizada de Imaginária Mente.
LOS CATEDRÁSTICOS: A COMÉDIA BAIANA
OU QUEM TEM MEDO DA IDADE MÍDIA
Prólogo: Um dia que durou 12 anos.
(Cinco atores no palco. B.O. ou quase sem luz...)
Coro:“Polêmicos! Racistas!! Burgueses! Maquiavélicos!!
Perfumados! Classe-média!! Preconceituosos!!
etc...
Voz Ator: (suave): Não, não... nada disso.
(Épico/Jogral solene, luz de epopéia): No início
era o Verbo... / E o Verbo se fez carne /
E “encarnou” entre nós. / E era o tchan...
Ator X: Foi só depois, muito depois, que veio o Anã !
Ator
Y: (Quebrando o clima/luz geral): Anã?Anã !? Que ”anã”, menino? Que
é isso, meu fio?
Ator
X: O anã! (surpreso,
faz o gesto mostrando a altura): o anã!! - Nossa Juventude!!
Ator Y: (Alguém que entendeu soletra):
A - não!! Anão!
Ator
X: Não o quê, sinhô! O
anã[1]
é o maior sucesso deste verão (se ajoelha e requebra.) / “Anão”, a
palavra é anão!! / A palavra é loucura!!
Jogral
Heróico: Loucura é
quando um dia dura 12 anos. / Há 12 anos atrás, em 1989,/ Um grupo de jovens
atores / Idealistas, românticos / Apaixonados por poesia / Criaram um recital /
Para uma apresentação,ÚNICA / Durante mais uma das inúmeras greves da
Universidade./ Esse grupo veio a ser conhecido como...
Todos:
(Tremolo, em tom de
terror trash): “Los Catedrásticos”!! / Mas, no ínicio mesmo (gesto
da propaganda do barbeador) fazia tchan. tchun! e... (5º Sinfonia)
Tchan, Tchan, Tchan,Tchan... /(Alguém interrompe de novo): Que coisa
antiga! Que tristeza!! / Nada disso!
Épico/Jogral: No início era a MÚSICA, o SOM, o OM...
/ E era a dança, em volta do fogo, sob o céu estrelado... / A poesia era a
surpresa, diante da luz, das coisas e da própria vida, / Em seus caminhos
infinitos e labirintos... (Gestos grotescos de Los Catedrásticos) - Por
isso, toda vez que a nega-do-cabelo-duro-que-não-gosta-de-pentear passava na
baixa do Tubo... / O negão começava a gritar: / Eu sou negão!Eu sou negão!Meu
coração é a liberdade! / E o Faraó, ó, ó, ó, ó... abriu a rodinha. / E eu te
futaco, te futeco, te futuco – Tô maluco! / E a Kirica na Buçanha? Chupa Toda!
/ Meu neguinho, minha neguinha... / Por favor, meu amor, abra a rodinha. Por
favor... abra... a rodinha! mômô... / Pra quê? Pra passar batom, de que cor? de
cor azul, na boca e na porta do... céu!
Todos: Eram “os” Los Catedrásticos[2]
/ E o seu Recital da Novíssima Poesia Baiana .../ Poesia? E a letra de música é poesia? / Alta
Periculosidade! / Polêmica! Sucesso!! / Bem recebido por todos os públicos! /
Da comunidade dos Alagados ao Teatro Maria Bethânia[3],
meses, lotado de quinta a domingo. / Dos malucos do Hospital Juliano Moreira,
aos teatros elegantes do sul do país – tão malucos quanto os do Juliano. / São
os “Novíssimos Baianos”, disseram. / Los Catedrásticos são referidos em tese de
Mestrado, (no Rio!) / “Uma saudável polêmica” acontece na imprensa. / Os
autores das músicas? Dão todo o apoio. / O Olodum convida pra debate público.[4]
/ O guarda vai multar o carro? / Não vai não... “São os Los Catedrásticos !” /
E o Recital da Novíssima Poesia... / Poesia? / Bahiana, criado para uma
apresentação – única! / (na greve, lembra?) / Ficou em cartaz de 89 a 92 – (Todos) –
Quem diria! /Três anos e meio ininterruptamente em cartaz. /Quase trezentas
apresentações para bem mais de 100.000 espectadores. / Uma carreira de polêmica
e sucesso. / Uma peça totalmente baiana. Bahiana com H – era um fato inédito![5]
/ Entre 93 e 96 fizemos outras peças... / E em 97 estreamos:
Todos: O Novíssimo Recital da Poesia
Bahiana! /(Um ator) Ihhhhh... / Aí começaram os nossos problemas
.../ O sucesso continuou, maior ainda! / Mas muita gente ainda não entendeu,
até hoje, que era outra peça. / Outra. Totalmente diferente! / Mas também com
esse nome... / A 1ª se chamava “Recital da Novíssima Poesia Bahiana” e a 2ª
“Novíssimo Recital da Poesia Bahiana”./ Durma-se com um barulho desses! / Por
isso, depois de um tempo, mudamos o nome da peça / E ao mesmo tempo atualizamos
o nosso repertório / A peça agora chamava-se “NPB – Novíssima Poesia
Bahiana”. /NPB é um jogo com MPB, entendeu?/ Não? MPB, música popular
brasileira... / Depois só o “NPB” e depois com o repertório atualizado – “NPB -
uma Ópera Buffa”./ Ópera Buffa?! Nunca gostei desse nome... / Depois “NPB –
Remasterizada[6]:
Incluindo novos sucessos”. / Não precisa nem dizer que incluía os novos
sucessos do verão, não é? / Aí já era o ano 2000 / Mas também com tanto nome a
imprensa e o povo só podia ficar maluco! / Mas não é bem assim, não. / É mesmo.
Ainda hoje tem gente que diz: “Catedrásticos?! Ihhhh, já vi em 89, lá na Escola
de Teatro, no Canela, ali, junto ao Paes Mendonça...”[7]
/ Agora, estamos aqui com “A Comédia Bahiana”./(Tom de pregão) – Depois
da Divina Comédia... / E da Comédia Humana.../ Afinal, “A
Comédia Bahiana”! / E foi assim que um dia durou 12 anos./ E 12 anos, juntos em um grupo, equivale a 120
anos de vida. / É um casamento! /Agora, em todos esses anos nosso casamento
só admitiu um único parceiro: (Pausa)
Todos: O PÚBLICO! (luz de platéia –
o grupo aplaude o público) / (Sai luz de platéia) – Acho mesmo é que
vocês é que são os verdadeiros Los Catedrásticos! Nunca tivemos apoio de
patrocinadores, de governo, de ninguém! / Mas, sempre tivemos público! / Em
todos os cantos onde temos andado, / Dos lugares mais elegantes ao muquifo mais
miserento, / Sempre teve alguém rindo, aplaudindo,/ gritando, debatendo, /
Partilhando a nossa viagem. / Por isso queremos fazer uma homenagem especial a
vocês, hoje. (Pausa) /Coro: Seja Catedrástico por uma noite! /
Venha deixe aparecer o artista que existe em você. / Vem neném, Vem neném. /
Venha cá, venha cá, Venha cá, venha cá. / Seja você também um Catedrástico! / É
só por uma noite/ Não vai doer/ Abra a rodinha/ Ô Corisco, Maria Bonita mandou
lhe chamar/ Vamos abrir a roda-enlarguecer, etc.
(Fragmento
do texto de Los Catedrásticos : A Comédia Baiana/ Temporada 2001)
Esse era o texto através do qual o público era convidado a participar
(recitando uma letra) de Los Catedrásticos. No fundo eles sempre souberam que
eram eles (o público) os tais “Catedrásticos” e talvez por isso tantos risos, e
também tanta participação, e até algumas performances verdadeiramente
brilhantes. Dizer que o público é parte imprescindível do fenômeno teatral
pode, a esta altura, soar demasiado teórico. Todos nós do mundo do espetáculo
sabemos bem a distância entre a palavra e a experiência. A idéia de que “a palavra
mata” (principalmente se escrita) adquire uma conotação singular no contexto do
fenômeno teatral, sobretudo porque a palavra define e delimita justamente os
aspectos ágrafos da espetacularidade tais como a festa, o encontro, as
imponderáveis dinâmicas coletivas, o númen mesmo da poesia dramática que estão
encarnados na presença do público. Não é à toa que o teatro é duplo: ao mesmo
tempo palavra (ou texto) e ação (quer dizer, efeméride e experiência coletiva).
O texto dramático então é aquele competentemente dotado dos vazios e falhas
imprescindíveis à ação e ao imaginário cênico. Foi em função disso que
incorporamos a esse artigo alguns fragmentos do texto e de outros elementos
mediadores do encontro entre atores e público, na expectativa de oferecermos ao
leitor subsídios, ainda que residuais, da nossa experiência, digamos,
artística.
Recital da Novíssima Poesia Bahiana foi o título do
espetáculo que marcou em 1989
a estréia de Los Catedrásticos, um grupo (de fato
um dos pouquíssimos grupos de teatro que já atuaram na Bahia) que permaneceu em
atividade por doze anos, quase treze, em que quase sempre esteve envolvido com
“recitais de poesia”. Claro que precisamos antes de tudo esclarecer o sentido
da designação “recital de poesia” na acepção catedrástica, quer dizer, no
âmbito dos dois atos do Recital da
Novíssima Poesia Bahiana. O segundo ato, que marcou tão profundamente e por
tanto tempo a identidade do grupo e de seus integrantes, era composto por cerca
de 30 letras de um tipo de canção extremamente popular na Bahia dos anos
oitenta: “o” axé-music. Foram essas letras (a “novíssima poesia”) as
responsáveis pela polêmica que acompanhou e justificou Los Catedrásticos
durante os doze anos de intensa atuação do grupo. O primeiro ato que era, por
sua vez, composto de uma pequena antologia de brilhantes poetas baianos,
transitava de Gregório de Mattos a Sosígenes Costa passando entre outros por
Castro Alves e Pedro Kilkerry e concluía com letras de “sambas-exaltação” a uma
Bahia tropicalista e estereotipada idealizada por gente de peso como Ary
Barroso, Caymmi, Herivelto Martins e outros como Paulo Diniz, Antonio Carlos e
Jocafi. Malgrado nossos esforços para incorporar Gregório e Sosígenes (veja o
poema no destaque) à polêmica que se seguiu à estréia do espetáculo (dissemos
por exemplo que Gregório, pela sonoridade exacerbada dos seus poemas e pela
ampla utilização de expressões africanas e indígenas em prejuízo da semântica,
era o verdadeiro criador da axé-music) acabamos por retirá-los do espetáculo
durante a nossa segunda temporada (já em 1997) porque ao contrário do que
ocorrera em 89 o público aparentemente não percebia ou não valorizava o
suficiente essas analogias e contrastes, talvez incomodamente eruditos em um
espetáculo que se pretendia popular.
“Dizem que sou
poeta da Bahia/ Eu não sei porque isso/ Eu não como efó/ Nunca vi um acarajé
Eu não sei o que é obi, nem
ebó, nem vatapá/ Nunca vi Bejerícum, nem orô, nem orobó/ Não vendo cocada/ Não
vendo jiló/
Não sei quem é Jubiabá/ Não sei quem é
Dona Lóló/ Não compro na biboca nem erê mais aterê/Eu não vivo labutando com a
Baronesa do Passe/ Nunca fui a Itaparica/ Não vou a festa de bagunça onde tem
faca e fuzuê/ Não pesco de puçá /Nunca fui pegar siri/ Se se come carurú com
farinha ou acaçá não sei/ Eu não moro em casa velha que levantou o vice rei/
Não faço feitiço/Não ando em candomblé/ Não acompanho procissão de ôpa velha lá
da Sé/Eu não toco pandeiro/ Não toco ganzá/ Não planto guiné nem croto dois de
julho/Não rezo pra Santo Antônio, nem São Cosme nem Damião/ Não sou esquerdista
ou direitista/ Nem farrista/Ou sacrista/Nem Vitória/ Nem Bahia, que já é até um
deboche/ Minha noiva não tem coche que pertencesse a Dom João/ Nunca fiz um
soneto ao casamento da raposa/ Minha avó não é Moema/ Nem meu pai Tomé de
Souza...
(Poeta da Bahia - Sosígenes Costa – adaptação de Los Catedrásticos)
O Recital da Novíssima
Poesia Bahiana, no entanto, não surgiu e nem foi concebido como um
espetáculo profissional. A sua criação se deu no contexto de uma das muitas
greves das universidades públicas, como uma entre outras atividades artísticas
de um almoço realizado para arrecadar recursos para o “fundo de greve”. Naquele
primeiro esboço de espetáculo as letras das canções do axé-music eram recitadas
em meio a palavras de ordem e ao jargão caquético e típico da militância, cuja
repetição, associada à pobreza de idéias, finalmente acabou por esvaziar a
dimensão política do movimento docente. Então o alvo da sátira a princípio era
o mundo acadêmico em sua proverbial rigidez e arrogância: por isso “Los
Catedrásticos”.
“Há espectadores para quem o teatro é essencial
exatamente porque não lhes apresenta soluções, mas nós. O espetáculo é o início
de uma experiência mais longa. É a picada do escorpião que faz dançar. A dança
não acaba na saída do teatro. O valor estético ou a novidade cultural do
espetáculo são o que tornam agudo o ferrão. Mas o seu precioso veneno vem de
uma outra parte,” ensina Eugênio Barba em seu Viagens
com Odin . Portanto, nosso método (nosso veneno) era o de estabelecer uma
analogia entre aqueles manifestos (descendentes do “Samba do Crioulo Doido” de
Sérgio Porto) e outras louvações à uma baianidade folclorizada, claramente
ridícula do ponto de vista da academia e o discurso “político” da militância
universitária.
O veneno da performance catedrástica transbordou os
muros da academia e foi assim que, para atender a diversas solicitações,
acabamos por elaborar o Recital da Novíssima Poesia Bahiana. Foram no
total dois ou três ensaios. Estabeleceu-se como fundamento (artaudiano?) que
iríamos construindo e/ou modificando o espetáculo em contacto com o público, a
partir de qualquer fator que nos parecesse válido, aliás, como faz qualquer boa
comédia desde tempos imemoriais. O espetáculo baseava-se na estética de um recital
(absurdo) de poesia ou canto lírico. Os atores em trajes formais, negros, com
um lenço na mão, dirigiam-se diretamente à platéia em solos ou em forma de
“jogral”.
“Deuses, divindade infinita do
universo/Predominante esquema mitológico/A ênfase do espírito original Chu/
Formará no Éden o ovo cósmico/ A emersão nem Osíris sabe como aconteceu (bis)/
A ordem ou submissão do olho seu/ Transformou-se na verdadeira humanidade/
Epopéia do código de Gebi/ E Nut gerou as estrelas/ Osíris proclamou matrimônio
com Isís/ E o mau Set irado o assassinou/ E impera, á/ Hórus levando avante a
vingança do pai/Derrotando o império do mau Set/ O grito da vitória que não
satisfaz/ Cadê? Tutancamon, Ê Gizé / Akhaenaton, Ê Gizé. // Refrão: Eu falei faraó, ó, ó / Ê
faraó/ Clama Olodum, Pelourinho / Ê faraó/ Pirâmide a base do Egito / Ê faraó/
Clama Olodum Pelourinho / Ê faraó/ Que mara/mara/mara/ maravilha ê Egito, Egito
ê /Faraó, ó, ó, ó, ó // Pelourinho uma pequena comunidade/ Que também Olodum
unira/ Em laços de/ confraternidade/ Despertai-vos para cultura egípcia no
Brasil/ Em vez de cabelos trançados/Veremos turbantes de Tutancamon/ E as
cabeças se enchem de liberdade/O povo negro pede igualdade/ E deixemos de lado
as separações./Cadê? Tutancamon, Ê Gizé
/ Akhaenaton, Ê Gizé. (Faraó
- Composição: Luciano Gomes)
O lenço servia, ao modo dos cantores líricos, para secar
suavemente os lábios (veneno?) no final de cada poema, um pouco antes da
reverência, e dos aplausos quase sempre entusiásticos. Apesar de inserirmos
aqui e ali, como um sinal de perigo, alguns textos de Artaud (que funcionavam
como zonas de incompreensão), a estrutura do “recital” era extremamente
simples: cada ator fazia aproximadamente cinco “solos”, intercalados por alguns
coros e jograis (que funcionavam como entremeios ou separatrizes das “cenas”),
recitando, com uma certa formalidade caricatural, e diretamente para a platéia,
os “poemas” que, como foi dito, no primeiro ato eram dos poetas consagrados da
Bahia e no segundo ato eram as letras do
axé-music[8].
Importante observarmos que na segunda metade dos anos 80
o teatro baiano passava por uma fase crítica de crescente perda de
visibilidade e vitalidade, fato que se tornava ainda mais evidente pelo
surgimento de uma próspera indústria regional de música. Da inspiração ou do
esforço de vários segmentos – blocos afro, blocos de Trio, compositores
experientes, ou ilustres desconhecidos -
surgiam inumeráveis “Sambas-reggae”, “Deboches”, “Ti-Ti-Tis...” e além
desses, praticamente a cada dia espocavam novos gêneros e sucessos
instantâneos, em uma bem urdida e competentíssima trama de criação e produção
que não tardou a envolver todo o Brasil e além, através de várias e prodigiosas
realizações internacionais[9], em um
processo todavia em franco desenvolvimento.
Por isso, enquanto os acordes da brilhante “Eu Sou Negão” (Gerônimo),
da escandalosa “Nega do Cabelo Duro” (Luis Caldas) e da épica e orgulhosa
“Faraó” (Luciano Gomes) ainda nem bem tinham parado de reverberar nas paradas e
quebradas, e já um grupo de teatro (teatro!?) aparecia recitando de modo
escandaloso as letras daquelas canções de sucesso, isso acabou gerando uma onda
de polêmica e curiosidade em torno do nosso espetáculo e estabelecendo uma aura
de vitalidade ausente do cenário teatral da Bahia já há alguns anos. Foi
justamente o interesse, a curiosidade do público e a polêmica que se
desenvolveu não apenas na imprensa (através de inúmeros artigos e “críticas”
sempre de aprovação ou desaprovação radicais), mas também através de palestras
e debates, do depoimento de músicos ou estudiosos, sempre animadamente contra
ou a favor “daquilo” que o espetáculo expunha, foi tudo isso que transformou
aquela performance da greve, primeiro em um espetáculo a ser apresentado em
bares, restaurantes e casas noturnas em geral e depois, quando finalmente
cedemos às pressões e apelos, em um espetáculo “profissional”, pronto para ser
apresentado em teatros com um palco à italiana.
Nesse processo de transformação foram muitos os incidentes
envolvendo Los Catedrásticos, que revelavam e de certo modo confirmavam a
trajetória do grupo. À surpreendente recomendação e comentários de Caetano
Veloso durante sua temporada de shows em Salvador/1990 (ele tinha assistido ao
recital em uma boate!) somam-se alguns eventos curiosos da primeira temporada
de apresentações contínuas do espetáculo, realizada em um teatro-bar nos
jardins da Escola de Teatro da UFBA. Criada despretensiosamente, aquela
“performance de greve” trazia em suas entranhas um perigoso e delicado problema
de direitos autorais. O problema é que, pelo menos trinta letras de canções de
sucesso, de autores diversos, eram recitadas na íntegra, isso sem mencionar os
vários fragmentos de letras, poemas, e de outros textos diversos. Naturalmente,
nenhum autor foi consultado e se tivessem sido, creio que jamais autorizariam
previamente a utilização das suas obras e muito menos para “aquele” recital.
Além disso, havia a evidente questão da remuneração. Autores de sucesso que
eram, jamais aceitariam o nível de remuneração praticado e exeqüível a uma
produção independente do teatro baiano. Aliás, durante todos os anos de
Catedrásticos, não houve uma pessoa sequer (de fora do mundo do teatro), que
não tivesse manifestado sua surpresa e decepção ao tomar conhecimento dos
valores (financeiros no caso) envolvidos em um projeto tão bem sucedido e
“glamuroso” como Los Catedrásticos, (registre-se que as remunerações do “teatro
de sucesso” parecerão sobretudo modestas se comparadas às da “música de
sucesso” tematizada no Recital).
Seja como for, o problema estava instalado conosco, ali nos
jardins da Escola de Teatro, transformada em um dos “points” daquele verão,
pela primeira temporada realizada por Los Catedrásticos, depois de vários meses
em espaços não teatrais: boates, restaurantes, bares, sindicatos, escolas,
empresas etc.. Os comentários de gente como Caetano Veloso, somados às
polêmicas na imprensa e à presença de figuras notáveis do ambiente cultural
brasileiro (tais como José Celso Martinez, Arnaldo Jabor, Roberto Talma, João
Falcão, Celso Nunes, Marlize Meyer e outros) já haviam criado uma “aura”
diferenciada para o Recital. “Na Bahia ninguém fica em pé” diz o provérbio
traduzido pelo lendário e folclórico “coronel” Cosme de Farias como: “Na Bahia
o sujeito paga 200 para o outro não ganhar 100”. Então, ao estrearmos nos jardins da
Escola de Teatro já pairava no ar a acusação de racistas, “classe-média
desfazendo da cultura popular” elitistas, etc.. De nada adiantaria termos feito
tantas e extremamente bem sucedidas apresentações em ambientes culturalmente
associados à negritude e ao “povo” como o próprio Olodum, praças do Pelourinho,
bairros como Alagados, Ribeira, Lagoa do Abaeté etc.; uma parte considerável
dos intelectuais, da crítica e da classe teatral (contrariando o imenso público)
aferrou-se em acreditar que estavam diante de um espetáculo elitista e
levemente racista.
Então em uma das nossas primeiras apresentações daquela
primeira temporada fixa, com a platéia lotada, aconteceu o inevitável.
Possivelmente motivado pela polêmica, um provável militante (?) de movimentos
raciais levantou-se no meio do espetáculo e gritou indignado, com a voz
estrangulada pela emoção: “Apartaid não!”. Isso, em pleno verão, logo após um
deslumbrante pôr-do-sol, num teatro-bar ao ar livre, com a platéia às
gargalhadas... Foi um choque! Os atores atingidos durante a representação foram
arrancados brutalmente do seu transe cômico, da tarefa mágica produzir uma
reação a cada verso/gesto na delicada corda-bamba do imemorial ritual do
teatro... “Apartaid não!” Agora quem estava em transe era a platéia. “Apartaid
não!” O “rastaman” que estava ali seguia gritando repetidas vezes, de pé, com o
punho esquerdo erguido (como um black panther), “Apartaid não!” Estaria se
defendendo e defendendo o rastafarianismo (?), ou em qualquer caso defendendo a
sua negritude de um inconcebível mas certamente desejado e amplamente
previsível ataque dos brancos? “Salassiê era uma Rei / que gostava de reggae
iô, iô” (Três vezes) /“Bob Marley era um Rei / que gostava de reggae iô, iô”
(Três vezes). Não importava que o controverso ditador etíope Ras Tafari
Selassiê (esse é o seu nome) cristão, monarquista, imperialista e sanguinário,
entre outras coisas, desaprovasse publicamente o fato de ser considerado o
“Messias”, um avatar libertador dos povos negros, cultuado por uma exótica
“religião” jamaicana. “Apartaid não!” Jamais saberemos quantas vezes gritou.
Subitamente calou, sentou-se e o recital que tinha “congelado” recomeçou como
se nada tivesse acontecido. Ao fato, que foi noticiado nos jornais, e que
confirmava nossa missão em territórios artaudianos, somaram-se outras várias
demonstrações de indignação, como por exemplo a do “crítico” que sugeriu que os
músicos do Olodum agredissem fisicamente os atores. Tudo isso por fim estabeleceu
a base para a nossa apreensão em relação à única possibilidade de interdição do
espetáculo que era uma eventual contestação da parte dos autores.
O desconhecimento geral, mas sobretudo o dos juízes, aliado
às inconsistências e precariedades das leis brasileiras de direitos autorais
nos sinalizavam que deveríamos, a todo custo, evitar o terreno pantanoso da
“justiça”. Por isso, quando vimos dois dos mais conhecidos integrantes do
“Chiclete com Banana” na platéia pensamos que teríamos problemas. E pensamos
isso porque: a)”Se liga Brasil, eu sou brasileiro” criada e gravada com
enorme sucesso pelo “Chiclete”era um dos pontos altos do recital; interpretada
furiosamente, (como Chaplin em “O Grande Ditador”) ao som do Hino Nacional
solfejado em coro pelos atores cujo
braço estirado associava nacionalismo/ integralismo/ nazismo/ e ...
axé-music(!), isto é, sucesso, moda, baianidade, folclore, etc; e b) o
“Chiclete com Banana” que era um parente distante do Tropicalismo e dos “Novos
Baianos” foi quem praticamente lançou as sementes do axé-music antecipando esse
movimento em pelo menos 15 anos. A engenhosa expressão “Chiclete com Banana” é
o título de um grande sucesso dos anos 50 na voz de Jackson do Pandeiro, e
curiosamente ecoa o elemento sincrético, já presente na união das palavras
“Jackson” e “pandeiro”. Essa canção, uma
espécie de samba-rock (banana-chiclete), foi regravada por Gilberto Gil no
início dos anos 70, no histórico disco “Expresso 2222”, quando do seu regresso
da Europa, onde esteve exilado pela ditadura militar, a título de resposta à
velha indagação sobre as “raízes” musicais brasileiras. No final da década de
80 o Chiclete já era um sólido sucesso nacional, superando amplamente em vendas
aqueles que inspiraram o seu surgimento.
Por tudo isso a presença de dois líderes do Chiclete na
platéia de Los Catedrásticos poderia significar uma brusca mudança no rumo do
jogo. Até então o escândalo tinha operado a nosso favor. O envolvimento de
figuras, grupos e da imprensa local, de certa forma conhecidos, significava que
tínhamos controle e alguma autoridade que nos era conferida tanto pela
pertinência quanto pelas qualidades artísticas do nosso espetáculo, amplamente
corroboradas pela reação do público. Já lidar com figuras nacionais, que poderiam
não ver tudo aquilo com bons olhos, era outra coisa. Por isso depois do
espetáculo nos divertimos com a expectativa de que a “previsível” proibição dos
autores saberia a chiclete de banana. No dia seguinte, os “chicletes” realmente
voltaram, mas em lugar de oficiais de justiça ou mandatos de segurança,
trouxeram os outros músicos da banda com suas mulheres, velhos e crianças, um
simpático grupo que se divertiu a valer com tudo o que viu, inclusive com o “Se
Liga Brasil...”. Apesar de toda a polêmica, a atitude dos “chicletes” foi como
que um padrão e em todo o tempo em que os recitais estiveram em cartaz, os
músicos não apenas não atrapalharam, mas sobretudo apoiaram e até estabeleceram
parcerias conosco, como foi o caso do Olodum, Margareth Menezes, Gerônimo,
Sarah Jane e tantos outros, entre os quais Luis Galvão e Moraes Moreira (Novos
Baianos) que até nos homenagearam com uma canção.
Então, se não eram os autores nem os músicos que, em geral
(houve exceções), receberam a sátira com humor e generosidade, quem estava por
trás de tanta polêmica? Jornalistas, “críticos”, professores, intelectuais,
gestores de espaços públicos ou privados, “forças ocultas” das ações e
políticas culturais...? E por que? Foi Tom Jobim quem declarou: “no Brasil
sucesso é ofensa pessoal”. Uma das estratégias dos “ofendidos” é tachar de
“comercial” aquilo que faz sucesso, como se ser “comercial” fosse um defeito em si. A maioria dos que
compõem a classe teatral baiana é jovem (desconfio que é assim em quase todo o
Brasil). E é assim porque como praticamente não há profissionalização, os
jovens quando deixam de ser jovens também abandonaram a atividade teatral para
se dedicar a outras profissões. Esses jovens ignoram que Shakespeare era um
grande sucesso comercial. Brecht também. Aliás, Shakespeare e Brecht são grandes
sucessos comerciais e, provavelmente, ainda o serão por muito tempo.
“O público consegue ver certas coisas que só poucas pessoas
conseguem...” Falcão, vocalista do “Rappa” (galã negro, dreadlocks, e figurino
rapper), opõe, em uma frase irada, o público (que no caso dele são muitos
milhares por show embora ele os designe como um – “o público”) aos
críticos, que são poucos e dentre os quais somente alguns, os especiais, veriam
o que o público vê. Mas aqui ainda estamos no caso do histórico e proverbial
divórcio crítica X público: Shakespeare, também, era espezinhado por críticos e
aderentes. Em um artigo sobre a onda de franquias dos grandes musicais
(Londrino/Nova Iorquinos) clonados em Berlim e outras cidades européias (também
em São Paulo
há já alguns anos), um crítico na Humboldt aponta o fato de que o público que
freqüenta esses musicais não poderia ser contabilizado nas estatísticas
teatrais, porque, como esse público não freqüenta outros espetáculos de teatro
(bem como o espectador “padrão” do teatro também não freqüenta os tais
musicais), não poderia, rigorosamente, ser considerado “público de teatro”.
A esta altura poderíamos pensar, “baianamente” no caso, que o
crítico alemão concluirá que uma vez que o público dos musicais não é público
de teatro, logo também os musicais não poderão também ser considerados como teatro. Ainda que os
críticos não vejam (segundo Falcão) o mesmo espetáculo que o público consegue
ver, a maioria concordará que o público teoricamente é imprescindível, embora
alguns tentem na prática transformá-lo em um detalhe inevitável e quase
desagradável e por isso toda essa incrível mitologia do “comercial” e do
entretenimento. O que o nosso crítico da Humboldt pretende é destacar o fato de
que existem públicos distintos para diferentes tipos de teatro. E se o público
do teatro “padrão” (seja ele comercial, cultural, de arte, de vanguarda, de
pesquisa, antropológico etc.) está diminuindo (e se formos dar crédito a Karl
Valentim e ao seu manifesto pelo “Teatro Obrigatório”, está diminuindo há
muitos anos), o público dos musicais clonados, ao contrário, está crescendo e
muito. Aliás, não precisamos da Humboldt para percebermos que o crescimento dos
públicos que saem à noite em busca de diversão e entretenimento é um fato
histórico e já não há governos “modernos” que não incluam o direito ao lazer, à
arte a à cultura entre os preceitos básicos da cidadania. Ocorre que boa parte
dos “pensadores” e dos jovens artistas do teatro se aferra a raciocinar em termos
categóricos: crêem, por exemplo, que o teatro é Arte e é Cultura e não
entretenimento. A categoria “entretenimento” compreende qualquer tipo de
espetáculo (ou obra levada ao público) que, para cumprir a finalidade de
atingir o maior número possível de pessoas, recorre a expedientes grosseiros e
apelativos e faz todo o tipo de “concessões”, num esforço ignominioso para
agradar e mesmo ampliar seu público. E assim, “Teatro não é para divertir”;
“Teatro não é entretenimento”; “Teatro não é para se ganhar dinheiro”, etc...
além de outras frases do tipo que acabam por impedir os verdadeiros fantasmas
do teatro de saírem do mundo de Pluft para o de Hamlet.
Pouquíssimos se
arriscam (porque há o risco de ser considerado “comercial” e isso deve ser mais
grave do que um teatro vazio). Pouquíssimos tentam criar espetáculos para esse
público do “entretenimento”, que cresce vertiginosamente, aqui como na
Alemanha. Não foi justamente esse risco que fez de Shakespeare, Ibsen ou
Brecht, sucessos escandalosos, cada um a seu modo e no seu tempo? Em relação à
evidente ingenuidade, para não dizer leviandade, do esforço opositivo entre
“cultura e entretenimento” citamos a fala de Meyerhold extraída do livro Além
das Ilhas Flutuantes de Eugênio Barba: “É certo que devemos fazer com
que as pessoas do público paguem pelo teatro que elas querem, porém deveríamos
pagar a elas, do nosso próprio bolso, para fazermos o teatro que nós queremos”.
As palavras do velho mestre da
biomecânica permitem várias reflexões, mas são inflexíveis e cristalinas quanto
à sua equação básica: o publico pagará se o espetáculo for interessante. Ou o
público só pagará se for interessante. O teatro profissional é um serviço
(transcendental, político, poético, estético...) a ser remunerado na medida da sua
relevância e eficiência e essa medida é evidentemente o número de espectadores,
quer dizer de pagantes. “Interesse” é a única e a última palavra pronunciada
por Deus quando inquirido por um anjo sobre a solução para os eternos
desencontros do teatro, na cena descrita por Peter Brook, nas páginas finais de
seu “Ponto de Mudança”. Barba ainda vai um pouco além: “a matéria prima do
teatro não é o ator(...) mas o interesse, o olhar, a escuta. O teatro é a arte
do espectador.” É em função disso que podemos considerar totalmente
aceitável a platéia vazia de um espetáculo que foi feito para o público. Já a
platéia vazia de um espetáculo que não foi feito para o público é um monumento
à insensatez e certamente uma forma de escárnio. Um teatro de Arte é o que interessa
naturalmente ao público. A Arte do teatro é interessar; vale dizer: encontrar
formulações estéticas que interessem é o ethos do teatro, mesmo aquele que não
é assumidamente profissional. Um teatro que não interessa ao público obviamente
não possui função social (pública) e seus integrantes deveriam, na sentença
meyerholdiana, pagar “do próprio bolso” aos espectadores para assisti-los.
Ao contrário dos seus similares
do áudio visual que dependem de estruturas caras e complexas de distribuição e
/ou exibição, o teatro, o da Bahia, como o de qualquer parte do mundo, pode
encontrar no contacto direto com o público e na “propaganda boca-a-boca” um
caminho (talvez o único) para a sua consolidação. Esta é apenas uma entre
tantas outras características tribais que fundamentam esse veículo milenar de
cultura e sabedoria, desde suas origens.
Mas a questão dos pagantes
apontada por Meyerhold, que já era significativa desde a Grécia Clássica,
assume uma característica singular no tocante ao teatro baiano, que tentaremos
analisar a partir da noção de “público”, tal como definida pelo Falcão do Rappa
e da noção de “não-espectadores” de teatro articulada pelo crítico da Humboldt.
O número de pagantes no teatro baiano era no final dos anos 80 muito pequeno e
podemos afirmar que “visivelmente” ainda é, até porque de fato e
sintomaticamente não existem estudos ou estatísticas a respeito. Aquelas
pessoas (poucas) que freqüentam os espetáculos são em geral gente de teatro,
estudantes, professores, críticos, gestores de instituições culturais, além dos
inevitáveis amigos e parentes. Essas pessoas não podem ser designadas como
“público”, mesmo que em alguns poucos casos paguem (para ajudar) e, às vezes,
em pequenas temporadas ou pequenos espaços dêem a impressão de “casa lotada”.
São de fato integrantes do universo “privado” do teatro e não podem sequer ser
confundidos com o espectador “padrão” de teatro, aquele que regularmente “não
freqüenta” musicais, como apontado pelo crítico alemão. Essa parcela de
público, à qual nomeamos aqui como “privado”, aparece referida no livro O
Teatro e seu Espaço (The Empty Space no original de 1968) de Peter
Brook, no capítulo “Teatro Morto”, onde ele também discute o “esvaziamento
mundial do teatro”, a exemplo do que também fez Artaud em O Teatro e seu
Duplo (1940) e tantos outros. O espectador “padrão” de teatro, apesar de
tudo, praticamente não existe na Bahia, que no entanto possui espectadores
“padrão” de cinema e de shows de música, sobretudo axé e pagode, mas também
forró, MPB e POP[10]. Marcada
por políticas de financiamento (públicas e privadas) grosseiramente equivocadas
(em geral voltadas para o “teatro arte”, teatro experimental, etc.) a Bahia
nunca conseguiu criar um sistema regular de produção, circulação e consumo de
teatro que fosse autônomo e atrativo para o público. Naturalmente, quando
falamos de cultura teatral o elemento chave é o público. Na Bahia nada (ou
quase nada) sabemos sobre ele. Nunca se construiu a presença regular de um
público de teatro e por isso permanecemos na espera do “privado”.
O caso de Los
Catedrásticos é, primeiro, o caso das exceções, “mega-sucessos” que volta e
meia acontecem e sempre mantêm as aparências; e é em segundo lugar o caso do
“não-teatro”, como os musicais clonados da Alemanha. O espectador de Los
Catedrásticos é justamente o “não espectador” de teatro, aquele cuja categoria
está em expansão em todo o mundo e aquele que no caso da Bahia comparece aos
milhares quando um espetáculo ultrapassa a barreira do privado. Então uma das
razões da polêmica em torno de Catedrásticos certamente se deve ao fato de que
o seu sucesso tenha demonstrado incomodamente que na Bahia existe um grande
público potencialmente interessado em projetos cujo horizonte não seja privado.
Isto posto, devemos afirmar ainda que Los Catedrásticos de fato não é teatro
(também como os musicais) ou pelo menos é um não- teatro.
“Representema” é o termo utilizado por J. Guinsburg e Teixeira Coelho Neto em seu
conhecido artigo “A significação no teatro” (do livro Semiologia do Teatro)
para referir-se a um certo tipo de
manifestação teatral. À maneira da lingüística, eles reconhecem no teatro (na
linguagem teatral) dois níveis de manifestação, sendo “teatrema” o primeiro e
representema o segundo. Assim, segundo Guinsburg/Coelho Neto o teatrema é o
nível que comporta a manifestação plena em termos de significação no teatro e é
resultante da tripla-inter-relação das “funções”, personagem, cenário e jogo.
Já o representema implica em um segundo nível de manifestação, anterior e de
certo modo mais elementar, produzida pela inter-relação de outra tríade: ator,
espaço e máscara. Em suma, teatrema é o teatro (personagens, trama, cenário
etc.) enquanto instalação e construção dramatúrgica, isto é: cultura e
tradição. E representema seria toda a situação de espetacularidade em que não
há propriamente uma narrativa e mímese dramática, como por exemplo o
strip-tease, os números de magia, de equilisbrismo, etc. e onde não há
personagens, mas uma presença ou uma persona como no caso dos cantores em shows
de música.
Embora a equação de Guinsburg/Coelho Neto para a linguagem
teatral cometa o equívoco de deixar de fora justo o “x” da questão, que é o
público – (e que a nosso ver é o elemento definitivo do teatro) – a engenhosa
definição de representema oferece uma boa plataforma para nossa questão
“não-público de teatro” (ou público de não-teatro). Para levar à cena um
“recital de poesia”, Los Catedrásticos realizavam um espetáculo composto por
“solos” (não-monólogos) em que os atores recitavam os textos diretamente para a
platéia (mesmo no caso dos duos ou jograis). Tratava-se de um espetáculo que
fingia ser um recital? (Um teatrema representando um representema?). Seja como
for, não havia estória, nem personagens, o cenário era uma “ambientação” mais ou
menos indefinível, nenhum diálogo, nenhum tipo de conflito, etc. De fato,
formava-se aos poucos através da recitação dos “poemas”, intercalados por
textos de Artaud (que ninguém entendia muito bem, mas que criavam uma certa
inquietação interessante) o mosaico carnavalizado de uma impiedosa sátira.
Embora no caso de Los Catedrásticos a fragmentação, a inexistência de
estória e personagens, aliada à atmosfera de festa e teatro-do-absurdo permitam
uma aura de contemporaneidade, seguramente foi a sua qualidade de representema
(ou de não-teatro) que fundamentou o diálogo com o público.
Nesse sentido o trabalho dos Catedrásticos possui muitas
semelhanças com outros “mega-sucessos” do teatro baiano, Os Cafajestes e
A Bofetada, além dos não citados, porém significativos monólogos Oficina
Condensada (Aninha Franco/Fernando Guerreiro/Rita Assemany): uma “aula”
sobre a história do feminismo; e “1,99”
(criado e interpretado por Ricardo Castro) uma “conversa” do ator com a platéia
sobre o ato de sentir-se um verdadeiro palhaço no Brasil contemporâneo. Em
todos a característica comum e marcante é serem “não-teatro”, ou seja:
espetáculos em que o jogo, a festa, a farsa, o diálogo com o público, o
non-sense, a bufonaria, etc. são mais importantes que uma eventual verossimilhança
seja de uma estória ou situação. Nestes espetáculos o público está diante de
presenças que se confundem com os próprios atores que definitivamente não estão
“interpretando” (vivendo) nenhum personagem. Além é claro de serem comédias de
matar de rir.
A perspectiva dos teatros fechados (os edifícios teatrais) do
Renascimento legou à modernidade entre tantas coisas, uma rica iconografia
cênica que através de plantas dos teatros, desenhos, pinturas, esboços de
cenário, figurinos, adereços, esquemas de maquinários etc., fornecem
testemunhos “documentos” vários que permitem à Antropologia Teatral uma visão
mais precisa das relações ator-espectador.
Se a antiguidade greco-romana elaborou um sistema teatral para todos os
públicos, onde os conceitos de “popular” e “erudito” eram de todo
impertinentes, foi a Idade Média que plantou as sementes do que viriam a ser
esses conceitos no teatro contemporâneo. Primeiro com a proibição do teatro
pela igreja por vários séculos e depois com a apropriação pela mesma igreja e
institucionalização do teatro como parte da liturgia e da catequese. Tudo isso
resulta no movimento acadêmico-burguês renascentista que leva o teatro a
edificações fechadas, progressivamente afastando-o do povo. A iconografia dessa
cena se estratifica em três tipos: cenários de palácios, para gêneros
descendentes das tragédias gregas onde figuravam reis, deuses e heróis; cenários
de ruas, para gêneros descendentes das comédias greco-latinas onde reina o
povo e seus “tipos”; cenários rurais, para gêneros pastorais (pastoris)
que preservavam elementos do drama satírico, seres fantásticos e mitológicos.
Apesar da elitização gradual do teatro, seus elementos iniciais e “populares” –
poesia, canto e dança – continuariam em cena, ainda por muitos séculos .
Incrivelmente o
conceito de “popular” utilizado por estudiosos e acadêmicos é, ainda hoje,
idêntico àquele do Renascimento, herdado das origens do teatro da Grécia
Arcaica ou da urbis romana. “Letra de música é poesia?” e afinal “o que é
poesia?” eram algumas das questões levantadas, pelos Catedrásticos, que sob
todos os aspectos faziam um espetáculo popular. Incrivelmente hoje, na
sociedade de massas, nas democracias contemporâneas, nas sociedades
multiculturais e pluralistas, ainda existem figuras do mundo da academia
pensando em termos de “raízes” de “identidade cultural” e de cultura/arte
“popular” (Pastoril? Bucólica?). Não haveria em tudo isso uma confusão com o
folclore? Não haverá também e sobretudo uma confusão entre o comercial e o
popular? Hoje na Idade Mídia, popular é (só pode ser) o que agrada a muitos (já
que “a todos” é praticamente impossível). São do período romântico tanto as
utopias democráticas e republicanas, quanto a utopia de uma “arte para todos”
(rompendo com os padrões eruditos e acadêmicos do Renascimento). Qual seria
então a origem da mentalidade hegemônica no meio cultural de desqualificação do
que é popular (isto é, do que agrada a muitos)? A mesma pseudo erudição está
por trás da idéia muito difundida entre literatos de que “poeta” é uma título
honorífico e não uma prática, um prazer, ou uma profissão. De acordo com este ponto de vista designar-se alguém
como “poeta” significa uma condição de clara superioridade, como se não pudesse
haver maus poetas ou mesmo poetas medianos. Uma parte da polêmica
cuidadosamente provocada pelos Catedrásticos (e que se acentuava pelo sucesso
do próprio grupo) envolvia os conceitos de poesia, música e popularidade. Tudo
isso que soava (soa?) contemporâneo e controverso, estava prefixado pela clarividência
de J. L. Borges no capítulo “As Letras” da sua História do tango
publicada em 1930:
De valor desigual já que
notoriamente derivam de centenas de penas heterogêneas, as letras de tango,
elaboradas pela inspiração ou pelo esforço compuseram, ao fim de meio século,
um quase inextricável corpus poeticum que os historiadores da literatura
lerão ou, em todo caso, vindicarão. O popular, sempre que o povo já não o
entenda, sempre que os anos tenham-no tornado antigo, obtém a nostálgica
veneração dos eruditos e permite polêmicas e glossários; é verossímil que até
1990 surja a suspeita ou a certeza de que a verdadeira poesia do nosso tempo
não está em La Urna
de Branchs ou em Luz de Província de Mastronardi, mas nas obras
imperfeitas que se entesouram em
El Alma que Canta. (...) Também poderíamos dizer que estas (as
letras de tango) formam uma vasta e desconexa comedie humaine da vida de Buenos
Aires. Sabe-se que Wolf escreveu em fins do séc. XVIII que a Ilíada antes de
ser uma epopéia foi uma série de cantos e rapsódias; isto permite, talvez, a
profecia de que as letras de tango formarão com o tempo, um longo poema civil,
ou sugerirão a alguém, ambicioso, a escrita deste poema.
Investir contra
a folclorização dos artistas ditos populares e ditos “autênticos” (e sempre
pobres miseráveis) por parte do mundo acadêmico (o “bom crioulo” e o
“universotário” segundo Rogério Duarte em Tropicaos); contra a
estereotipia de compositores jovens e criativos (criadores do axé, do
samba-reggae e de milhares de ritmos...)
pela indústria fonográfica; contra um teatro velho de estórias e
personagens feitos para espectadores privados; buscar inspiração em ícones da
espetacularidade popular brasileira como Oscarito, Carmem Miranda, Grande
Otelo, etc., foram algumas das marcas do Recital
da Novíssima Poesia Bahiana, uma criação de Los Catedrásticos que em seus
três anos e meio ininterruptamente em cartaz, entre Salvador, (vários teatros)
cidades do interior da Bahia, Sergipe (Festival de São Cristóvão), Rio de
Janeiro, (Teatro Glauce Rocha) e São Paulo (Teatro Ruth Escobar e Teatro Sérgio
Cardoso), provocou gargalhadas de estimados 120.000 expectadores. Era sucesso
em dimensão realmente profissional, e suficiente para um teatro vivo. Mas, no
caso dos Los Catedrásticos, igualmente importante foi a polêmica e o
reconhecimento: quantas vezes (o anonimato é prerrogativa do diretor)
assistimos em bares, restaurantes, shoppings, bancos etc discussões acaloradas
sobre nossa peça e sobre música, poesia, e indústria cultural? Além disso ainda
participamos, “visivelmente” no caso, de inúmeros seminários e eventos de
escolas, institutos universitários. Todo esse debate repercutia e era
repercutido pela imprensa, que se manifestou com exuberância, e vitalidade,
também refletindo as várias opiniões dos famosos. Em suma: Los Catedrásticos,
ao consolidarem o assunto “letra de música versus
poesia” na agenda da imprensa local e nacional, acabaram por catalizar a maior
polêmica já realizada em torno de um espetáculo teatral produzido na Bahia.
3º ato: "A derrota da razão" (Poesia
Trágica)
(Peripécia X Reconhecimento;
Nó X Desenlace e ironia são elementos da Tragédia segundo Aristóteles)
Em "A Origem da Tragédia na Música",
Nietzsche sustenta que a Tragédia Grega surgiu aproximadamente no século VII
a.C., a partir dos festejos em homenagem ao semideus Dionisius (Baco),
festejos que em tudo se assemelhavam ao carnaval da Bahia. Fenômeno universal,
a arte (poesia) demonstra que a realidade está fora do alcance da razão humana.
Aliás, "realidade" é apenas uma palavra e uma idéia, que
provavelmente nada tem a ver com a realidade. Do mesmo modo que "o coração
tem razões que a própria razão desconhece".
Cena 1 - peripécia:
"Maria
Joaquina"(Osmagrinho e Moreno) com Jackson Costa Reconhecimento: Fernando Conceição (Jornal A
Tarde, março/91) com Ricardo Bittencourt.
Cena 2 - peripécia:
"Rapunzel"
(Carlinhos Brown e Alain Tavares) com Maria Menezes e Jogral Dialético. Reconhecimento:
Hamilton Vieira (Jornal A Tarde, fevereiro/90) com Jackson Costa.
Cena 3 - peripécia: "A dança do
Cachorrinho" (Márcio Luigi) com Ricardo Bittencourt e Jogral Dialético. Reconhecimento:
Suzana Varjão (Jornal A Tarde, março/91) com Cyria Coentro e Jogral Dialético.
Cena 4 - peripécia: "Embolê" (Nego do
Surdo, Bôboco e Marçal) com Zéu Brito e Jogral Dialético.
Nó: Meu cabelo duro é assim (Bell Marques, Vadinho
Marques e Paulinho Camafeu) com Cyria Coentro e Jogral Dialético (autores
vários).
Desenlace e Ironia: o que será, será? (Jogral
Dialético) Êxodo.
4° ato: Carnaval dos mortos (poesia turístico-transcendental)
"Abandonem as
esperanças, os que entrarem" era o que estava escrito na porta do inferno,
episódio do poema de Dante Alighieri "A Divina Comédia". Nele, o
poeta também visitava o céu e o purgatório na esperança de encontrar a sua
amada. Já na "Comédia Humana" de H. Balzac não há lugar para
esperanças, ao contrário da comédia baiana (NPB), que articula a seguinte
pergunta: Haverá carnaval depois da morte?".
Epitáfio 1: "Meu professor é Boiola” (Dito e R.
Fechini). Recitante: Zéu Brito.
Epitáfio 2: "A dança do Pirulito" (M. Luigi e R.
Danger). Recitante: Maria Menezes.
Epitáfio 3: "A minha vida é minha" (C. Brown e
D. Caldas). Recitante: João Miguel.
Epitáfio 4: "A dança da Cordinha" (J. Zaratii,
Dito e R. Fechini). Recitante: Cyria Coentro.
Epitáfio 5: "O Corno" (Cal Adam e Chocolate da
Bahia). Recitante: Ricardo Bittencourt.
Juizo Final: "Raimunda" (Gang do
Samba). Recitante: Jogral de Zumbis.
Fui até o lugar onde nasci e gritei: "os amigos
de minha juventude, onde estão?" E o eco respondeu: "onde
estão?" fui até os muros da cidade e gritei: "Qual é o sentido da
vida?!" E o eco respondeu: "a vida!".
De que serve correr, quando se está no caminho
errado? Já que não existe um caminho único, cada um terá de encontrar o seu. É o que parece nos dizer
"Raimunda" enquanto passa ressuscitando os mortos.
Buraco Negro "A Bunda..." (Carlos Drumond de
Andrade)
Carlos Drummond de Andrade, criou junto com outros
baianos ilustres
(Santos Drumond e Osvaldo Andrade) o Bloco de Carnaval- Tropicalista Filhos de
Grande, no século passado. Por que não? Quem olha para fora sonha quem olha pra
dentro, acorda.
Entreato: O final do juízo...
Uma catarse democrática e universal rompendo os
limites entre o palco e a platéia, entre a ficção e a realidade.
5 º
ato: Navegação:
www.svn.com.brlloscatedrásticos/
Novamente a mistura do Brasil
com o Egito. Como Napoleão Bonaparte que invadiu o Egito em busca de sabedoria
antiga e mística dos sacerdotes e faraós, NPB faz aqui uma grande
síntese entre as danças do ventre, do bumbum, do au-au, da tartaruga e do
pirulito, que significam em sua alegria e sensualidade a fé em um mundo melhor
e mais justo e a esperança em uma humanidade, que vai superar seus problemas
atuais apoiada por um só pensamento central e inspirador: nunca acredite no que
dizem os outros.
Axé! - Ralando o Tchan ("é o Tchan") - We are the World of Carnaval
(N. Guanaes) Jogral Catedrástico.
Êxodo Final : retorno ao
futuro. - "salve-se quem souber".
Feito com a cabeça para fazer a cabeça : Arte é emoção e entretenimento.
Agindo como um espelho, pode enriquecer o cotidiano e ampliar a imaginação
das pessoas. Esse é o fundamento da Novíssima Poesia Bahiana, apresentado por
Los Catedrásticos, agora além dos limites da baianidade. O espetáculo, que
estreou em novembro de 97, e
vem conseguindo casas lotadas, significa uma retomada pelo grupo de uma
temática já conhecida do grupo desde o Recital da Novíssima Poesia Bahiana,
que entre 89 e 91 foi apresentado centenas de vezes em todos os tipos de
espaços - teatros, bares, sindicatos,
hospícios, asilos, shoppings, centros comunitários, quadras esportivas,
empresas, manifestações político, culturais, festivais, etc. - atingindo
milhares de espectadores e consagrando-se não apenas como um dos maiores
sucessos, mas principalmente como um dos mais polêmicos espetáculos já
realizados na Bahia. O olhar enviezado de alguns teima em considerar
banalidade o fenômeno da música baiana. Caracterizada por um enorme poder
descentralizador (em relação ao sul), por uma profunda vocação mercadológica
regional, nacional e internacional, além de pluralidade e especificidade
estéticas, a "Música Bahiana" é um dos mais significativos
fenômenos da história recente da cultura brasileira. Público, artistas,
mídia, políticos, todas as peças da indústria cultural estão representadas
nas cenas da Novíssima Poesia Bahiana. O espetáculo aborda ainda o trabalho
teatral do próprio grupo Los Catedrásticos, além de questões contemporâneas como
a conquista e transformação do passado e: "será a derrota da razão um
fato definitivo?" Não deixando de anotar a expansão internacional da
nossa música. Música escrita para tocar muito alto impede que se ouçam os
próprios pensamentos. Fazendo comédia da carnavalização do cotidiano, a
Novíssima Poesia Bahiana é um espetáculo que vai do axé e do jogo para o ori
(cabeça) e daí para o orum (planos superiores onde dançam as forças que
verdadeiramente determinam a vida no planeta). É um espetáculo feito com a
cabeça para fazer a cabeça. revelando (retirando véus), desenvolvendo
(retirando invólucros) e descobrindo (retirando cobertas) para que as pessoas
fiquem sabendo o que já sabiam sem saber. Pois "para aqueles que
descobrem belos significados em coisas belas, para estes há esperança"
(Oscar Wilde). Ou como no enigma poético, semiológico e baiano: "nunca
acredite no que dizem os outros".
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Em sua segunda temporada o Recital da Novíssima Poesia
Bahiana transmutou-se em
Novíssimo Recital da Poesia Bahiana que ainda viria a ter vários outros títulos durante os seus
mais de quatro anos de temporada ininterrupta (NPB – Novíssima Poesia Bahiana;
NPB; NPB – Uma Ópera Buffa; NPB Remasterizada – Incluindo Novos Sucessos; A Comédia
Bahiana e Enfim o Fim), correspondendo sempre a atualizações ou outras mudanças
de roteiro. O espetáculo desta segunda temporada foi produzido pelo Theatro
XVIII (projeto “Recordar é Reviver”) e significava a reunião do grupo depois de
alguns anos de separação. [11]
Se a primeira versão do Recital “surgiu” a partir de
uma performance de greve, apresentada na UFBa, a segunda, bem mais elaborada,
foi criada em função de tudo que havia ocorrido na primeira temporada e também
em relação aos avanços do axé-músic, agora solidamente estabelecido como um
grande empreendimento nacional. Como se pode ver pelo fragmento do programa (quadro
acima) o Recital progredira: agora era composto por cinco atos (cada um com
cinco cenas), entreatos, prólogo e epílogo em um emaranhado de textos que
incluíam além das letras-do-axé, fragmentos de críticas sobre Los
Catedrásticos, poemas como “A Bunda” de Carlos Drumond de Andrade, textos de
Artaud, da Seicho- No- iê; de Sidarta Gautama – o Buda, além de outros textos
criados pelo próprio grupo. Ou seja: agora tínhamos com clareza o propósito
compartilhado de criar um espetáculo e consolidar o nosso grupo, (Los
Catedráticos sempre foi um grupo, com remunerações iguais, tarefas divididas,
muita discussão etc). Agora estávamos artisticamente mais maduros (ao longo de
anos havíamos compreendido melhor o ethos da profissão) e então nos quinze dias
em que trabalhamos (pesquisa, roteiro, improvisação, texto, montagem de cenas,
figurinos, cenários e iluminação), fizemos uma sátira muito mais contundente
que a primeira. Pensávamos que agora estávamos prontos, mas o sucesso nos
surpreendeu como o caminhão de Macabéa. Vimos que dessa vez ia ser muito maior
que a primeira e nos lançamos à tarefa. De 97 a 2001 fizemos mais de quatrocentas
apresentações (quase duzentas em 99!). De novo fizemos temporadas em vários
teatros de Salvador, no Rio (Teatro Ipanema), em São Paulo (Teatro
Brasileiro de Comédias) e em Vitória do Espírito Santo. A diferença era que as
temporadas agora eram mais longas, mais estruturadas, para platéias maiores e
com uma eficiência artística muito superior à do passado. Também fizemos
centenas de apresentações em eventos (políticos, festivos, shows, educacionais,
publicitários, etc.) em congressos (apresentações gloriosas como no Congresso
da UNE/2000 em Salvador ou catastróficas como em um congresso nacional de
vendedores de agrotóxicos no Club Mediterrané), em festivais como o Festival
Internacional de Londrina e vários espaços não convencionais como boates e
danceterias, sempre para platéias numerosas. Nesses quatro anos em cartaz duas
novas linhas de ação de Los Catedrásticos merecem destaque: primeiro
apresentações em praça pública (ao ar livre). Embora seja um ambiente típico
das manifestações culturais baianas, são raros os grupos de teatro que se
apresentam nas ruas. Fizemos algumas apresentações realmente memoráveis (o
recital funcionava como um show de música) para muitos milhares de espectadores
(entre cinco e dez mil) no Terreiro de Jesus, na Ribeira, na Lagoa do Abaeté, e
nas cidades de Santo Amaro da Purificação e Nazaré das Farinhas. Chegamos
também a fazer vários e irreverentes debates com o público (aproximadamente
1.000 espectadores/por noite) em nossa série de apresentações nas praças do
Pelourinho, intituladas “Ao Pelourinho com a Ópera Buffa de Los Catedrásticos!”.
Mas a grande conquista da segunda fase de Catedrásticos foi mesmo o interior do
estado. Universo culturalmente desprezado pela classe teatral (que sempre pensa
colonizadamente no sul do país) e mercado potencialmente interessante, as cidades
do interior do estado da Bahia constituíram um circuito que foi percorrido
regularmente por Los Catedrásticos, obtendo um grande retorno, principalmente
pela grande sensibilidade, cultura e capacidade de reflexão das platéias (quase
sempre mais sofisticadas que os espectadores de não-teatro de Salvador) mas
também pelo interesse de um número realmente expressivo de espectadores (foram
cerca de 90 apresentações para mais de 50.000 pagantes).“É idiotice censurar a
massa por não ter o senso do sublime (...) E se, p.ex., a massa de hoje já não
compreende Édipo-Rei ouso dizer que a culpa é de Édipo-Rei e não da massa (...)
As obras primas do passado são boas para o passado, não para nós, temos o
direito de dizer o que foi dito de um modo que seja nosso, imediato, direto,
que responda aos modos de sentir atuais e que todo mundo compreenda.” Recorro a
Artaud que no seu “Acabar com as Obras Primas” (capítulo de O Teatro e seu
Duplo) sintetiza a nossa próxima reflexão. Evidentemente a resposta do
público a Los Catedrásticos vem em primeiro nível na forma de um regionalismo:
o público se vê nas referências do texto (dos “poemas”) e a sátira funciona
através da oportunidade oferecida pelo teatro ao espectador de distanciar-se
criticamente da sua comunidade. Mas isso não é o suficiente para explicar o
encontro dos Recitais com o público. Apesar de haver na “revelação” do conteúdo
das letras uma espécie de metáfora universal da sociedade de consumo (e das
manipulações da mídia) também não creio que apenas isso seria o suficiente
enquanto explicação. O que de fato há em Catedrásticos é um encontro do tema
com a forma. Forma, que se por um lado é não-teatro, representema e recital,
por outro é também a busca de uma dinâmica cênica carnavalizada cuja raízes
estão nas chanchadas da Atlântida e no Teatro-de- Revista, reeditados numa
ótica contemporânea. Em suma em Los Catedrásticos o roteiro, a dramaturgia e a
encenação conduziam o público, do envolvimento emocional ao entendimento
racional de um tema ao mesmo tempo conhecido e estranho; popular e erudito.
A Bunda
Engraçada está sempre
sorrindo/Nunca é drástica/ Não importa o que vai pela frente do corpo/ A
bunda basta – se/ Existe algo mais?/ Talvez, os seios/- Ora! Murmura a bunda,
garotos,/ ainda, lhes falta muito o que estudar/ Na cama agita-se/ Montanhas
avolumam-se – descem,sobem/ Ondas batendo numa praia infinita.../Lá vai
sorrindo a bunda/ Vai feliz na cadência de ser e balançar/ Esferas
harmoniosas sobre o caos/ A bunda é a bunda, /Redunda/ A bunda é a
bunda,/Redunda. (Carlos Drummond de Andrade).
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O roteiro e a dramaturgia do novo recital de Los
Catedrásticos, claro, não poupavam ninguém: o público, artistas, o mundo
acadêmico, os políticos, a indústria cultural e ... a imprensa! Os músicos
apoiaram, como sempre; o imenso público pagante riu ainda mais (de si mesmo) ao
reconhecer suas canções favoritas naquele universo absurdo e ao compreender que
era ele o verdadeiro alvo daquela sátira; os políticos, principalmente os da
“esquerda”, resmungaram diante da frase (extraída de uma entrevista de
Chitãozinho): “Não importa o partido, pra mim dinheiro de político é tudo
igual”. Mas... e a imprensa?
O 3º Ato do Recital chamava-se “A Derrota da Razão”. O
título era inspirado no livro do filósofo francês Alain Finkelkraut A Derrota
do Pensamento que por sua vez pertence ao universo das Imposturas
Intelectuais de Alan Sokal. As cenas de “A Derrota...” baseavam-se ainda na
divulgada criação de “linhas e grupos de pesquisa” em programas de
pós-graduação das principais universidades da Bahia, destinados a estudar e
produzir teses sobre a música baiana (!!). Para que não haja dúvidas: música
baiana quer sim dizer axé-music (!!!) além é claro de seus parentes próximos –
samba-reggaes, timbaladas e outras levadas indefiníveis e inumeráveis. Então,
na ficção das cenas de “A Derrota da Razão”, catedrásticos “estudiosos”
explicavam e debatiam em uma assembléia acalorada o sentido de letras como as
de “Maria Joaquina” e “Rapunzel”, p.ex.. Cada cena/debate era seguida de um
entremeio cujo texto era um excerto de “críticas” (não só as críticas
negativas, mas também as favoráveis), publicadas durante a primeira
versão/temporada do recital. Também como no caso dos poetas, os atores citavam
as fontes, que eram no caso o “crítico”, o veículo, o dia/mês/ano etc.. Era um
dos pontos de alta-temperatura em termos de humor/delírio do recital.
“Há uma diferença básica entre o palanque
doutrinário e a tribuna da imprensa. Naquele, o compromisso maior assumido, é
com a mão única da catequese. Neste, a análise imparcial das multifacetárias
manifestações sociais deve sobrepôr-se a caolha observância do que rezam as
cartilhas partidaristas. E é, por me afastar disso, que eu consigo bater
palmas para Los Catedrásticos. Bato palmas porque livre da venda catequista,
eu consigo enxergar no espetáculo, o que ele tem de fundamental, que é o
poder de negar a palavra pela palavra, não importa qual seja nem quem a
proferiu. O poder do discurso rompido por Los Catedrásticos, multicolor por
sinal, é fator secundário diante da capacidade do novíssimo teatro baiano de
despertar a compreensão do processo da construção de significados”. Suzana
Varjão, Jornal A Tarde, 08 de março de 1991... Entendeu? (Fragmento da
cena A Derrota da Razão).
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Nosso objetivo inicial era o de atualizar o roteiro à medida
que fossem publicadas novas críticas – aliás de modo idêntico ao que fazíamos
com os “novos sucessos” musicais. Incrivelmente não foi possível. Porque? Simplesmente
não houve críticas sobre a segunda versão do recital. Nem uma. Aliás quase nada
foi publicado na Bahia sobre Los Catedrásticos nos quase quatro anos de sua
segunda temporada. Muitas vezes estivemos excluídos até das páginas de serviço
dos jornais (no caso do jornal A Tarde, quase sempre) o que deve
significar a ruptura de algum código de ética (?) uma vez que uma página de
serviço de um jornal supostamente deveria divulgar todo o movimento cultural,
principalmente em uma cidade do porte da Salvador dos anos 90. A “censura” financeira
(censura “branca”?) imposta pela manipulação do noticiário cultural em todo
caso não funcionou. O que é grotesco, sobretudo, é a discrepância
desproporcional entre a vitalidade e densidade de Los Catedrásticos no cenário
cultural baiano e a sua presença (ou ausência) nos jornais. Los Catedrásticos
literalmente sumiram dos jornais. Uma pesquisa nos cadernos culturais do
período inevitavelmente esbarrará numa cortina de silêncio e concluirá que
houve, sim, um grupo de teatro que teria, certa feita, feito algumas
apresentações esparsas de poesia, mas nada que se assemelhe, nem de longe ao
que de fato aconteceu. O compromisso ético (?) dos jornais com um retrato
verossímil e factual da história é no caso dos Catedrásticos uma aberração
diante da qual “Chupe meu Braço” por exemplo, parece um capítulo de
Teletubbies. Como este parece ter sido também o caso de vários outros
grupos/espetáculos, é no mínimo curioso que os vários estudos e teses já
realizados sobre a crítica de arte/cultura baiana, jamais tenham sequer
mencionado, ainda que superficialmente, o assunto. O problema felizmente
limitou-se à “imprensa escrita” Porque Catedrásticos sempre dialogaram bem com
a TV. Ao contrário dos músicos, os “críticos” (na verdade repórteres), não
conseguiram encarar com humor e generosidade as nossas visões. Levam-se a sério
demais. A primeira temporada estabelecia então com a segunda uma estranha
proporção inversa na relação entre massa/densidade cultural e espaço midiático.
Haveria muito mais a ser dito sobre a aventura e a
experiência de Los Catedrásticos.
Penso, logo hesito. Pergunto-me se de fato tudo isso vale a pena. Haverá teatro
no futuro, digamos daqui a 30 anos? Já é noite, tarde e enquanto rabisco as
últimas palavras deste artigo, toca o telefone. Uma produtora. Precisa de um
espetáculo “fácil de se adequar a qualquer espaço”. Informa que o cachê é bom e
pergunta por Catedrásticos. Me diz que sim, que sabe que a peça saiu de cartaz
há vários anos, e insiste, “mas vocês não estão fazendo mais? de jeito
nenhum?!” insinuando que remontássemos (“é fácil!”) só para o evento, etc.
Finalmente convencida, me fez prometer antes de desligar que retomaremos o
projeto de Los Catedrásticos para 2006, “depois nos falamos, tchau”. Arte não
tem fórmulas. Não existe uma teoria do teatro. Uma das maiores lições da
cultura teatral é que uma coisa pode ter vários sentidos a depender da
situação. Então posso afirmar, tranqüilamente, que o Teatro Revolucionário, na
Bahia, é o Teatro Comercial. A revolução que ainda não aconteceu na Bahia, é a
revolução do Teatro Comercial. Se não, vamos ouvir Artaud ainda mais uma vez,
em “A Encenação e a Metafísica” :
“O teatro contemporâneo está em decadência porque
perdeu, por um lado, o sentido da seriedade e, por outro, o do riso. Porque
rompeu com a seriedade, com a eficácia imediata e perniciosa – em suma, com o
Perigo. Porque perdeu, por outro lado, o sentido do humor verdadeiro e do poder
da dissociação física e anárquica do riso. Porque rompeu com o espírito de
anarquia profunda que esta na base de toda poesia.” (O teatro e seu duplo)
Teatro da Crueldade é fazer um espetáculo que faça
sucesso e que interesse ao público (ou aos públicos) e que fique muito tempo em
cartaz. Crueldade é pagar bem aos atores, ao diretor, ao autor,
produtores e a toda equipe; é fazer temporadas populares, inclusive em praças
públicas ou em centros comunitários; Teatro da Crueldade é encher o teatro de
vida e de sentido. Sem piedade. Foi com Los
Catedrásticos que aprendi que tudo isso era possível. Só.
(Texto escrito em 2005).
[1]
“Anã”, corruptela de
anão. De fato entre 2000 e 2001 houve na Bahia, um conjunto musical de grande
sucesso “Nossa Juventude”, onde se destacava a presença de Pepe, um anão, entre
os dançarinos e cantores.
[2] “Os” Los Catedrásticos, modo pelo qual o grupo
era geralmente nomeado pelo público e às vezes pela imprensa. A designação
Catedrásticos revela a origem acadêmica do grupo e o artigo “Los”, sugestão de
um colega do comando da greve para a qual o recital foi criado, ressalta o seu
caráter de sátira ao bacharelismo.
[3] Uma temporada no Maria Bethânia era , à época,
o máximo que um grupo local podia almejar. Ali fizemos dois meses de lotação
esgotada (o teatro tinha 700 lugares) e observe que ainda se usava fazer
espetáculos de quinta a domingo, o que hoje já não se faz, principalmente em
temporadas mais longas. Outro fato marcante da temporada foi que para assistir
Los Catedrásticos, Maria Bethânia esteve pela primeira e única vez no teatro
que levava seu nome e que hoje é o Bingo Rio vermelho.
[4] “Olodum convida para debate”. Vários sucessos
do Olodum integravam nossos espetáculos e dentre eles o lendário “Faraó”.
Consta que os diretores do Olodum em visita ao British Museum perceberam a
negritude dos Faraós egípcios. Amparados nessa percepção criaram o Olodum,
grupo cultural cuja influência extrapola em muito o universo carnavalesco e
cuja importância já é histórica na cultura brasileira. A letra da canção
“Faraó” é um manifesto pela adoção da cultura egípcia no Brasil e pelo abandono
das tradições dos yorubás, gêges, bantos
etc. Em função da sua ampla utilização satírica em “Los Catedrásticos”, a
realização de um espetáculo-debate na sede do Olodum foi recebida com reserva
por setores da imprensa. Para participarmos do evento, no entanto, tínhamos
estabelecido uma condição: em contrapartida o Olodum
deveria também participar, tocando em um dos nossos espetáculos. Possivelmente
devido ao sucesso da “troca”, Olodum e Catedrásticos encontraram-se em vários
outros eventos, o que animou p.ex o “crítico” Hagamenon Brito a afirmar no
Jornal A Tarde que em vez de tocar no teatro com Los Catedrásticos o Olodum
deveria “fazer a coisa certa”, possivelmente insinuando que os músicos do
Olodum deveriam agredir os atores de Los Catedrásticos a exemplo dos conflitos
e pancadarias do conhecido filme do diretor americano Spike Lee (“Faça a Coisa
Certa”) baseado em questões musicais e raciais.
[5] “Fato inédito”. De fato Los Catedrásticos é o
primeiro espetáculo baiano (dramaturgia,criação, texto,etc) criado por
um grupo, que movimentou a combinação de polêmica, platéias e temporadas
ininterruptas em proporções solidamente profissionais. Sucesso nacional e o
maior sucesso de público do teatro baiano até hoje, A Bofetada (Direção
Fernando Guerreiro c/ Cia. Baiana de Patifara), que precedeu Los Catedrásticos em
alguns meses, é formada das melhores cenas do besteirol carioca. Também já no
ínicio dos anos 90 surge o musical “Os Cafajestes” (texto Aninha Franco/Dir.
Fernando Guerreiro), talvez a criação cênica baiana que mais prestígio crítico
angariou aliado a um imenso público em todo o país. Ainda hoje, mais de 15 anos
depois, Bofetada, Cafajestes e Catedrásticos compõem o marco referencial de
excelência, profissionalismo, sucesso de público, e repercussão do teatro
baiano no contexto nacional.
[6] “Remasterizada” é uma palavra amplamente
utilizada no jargão da indústria da música e que musicalmente não tem
significado algum. Remasterizar um CD significa ajustar outra vez os volumes
máximos e mínimos para homogeneizar a audição das diversas faixas. A
remasterização não implica em nenhuma modificação significativa em relação ao
original. A palavra é quase que propaganda enganosa, e como a idéia de
revelação, de desnudamento (e de engodo) é um dos fundamentos de Los
Catedrásticos, resolvemos adota-la como imitação e sátira teatral à indústria
da música.
[7] Paes Mendonça era o nome do velho
supermercado que nos anos 80 funcionava no bairro do Canela, ao lado da Escola
de Teatro da UFBA. A sua menção já no ano 2000 estabelecia de imediato para as
diversas platéias baianas o absurdo cômico da situação. Se por um lado essas
palavras evidenciavam o caráter provinciano do ambiente cultural da Bahia, por
outro revelavam que mesmo no caso de um “mega-sucesso” (que é como a imprensa
conceituou a peça) como Los Catedrásticos, o público é sempre extremamente
desatento para “detalhes” que no caso seriam os diversos espetáculos
apresentados pelo grupo. Também amplos setores da imprensa não perceberam que
os diferentes títulos correspondiam a diferentes espetáculos. Enfim, para a maioria
das pessoas prevaleceu o nome do grupo “Los Cadedrásticos” em detrimento dos
diversos títulos dos diversos espetáculos apresentados pelo grupo.
[8] “O” Axé-Músic: essa expressão ainda não
existia quando estreamos o recital. Consta que foi difundida a posteriori pelo
“crítico” Hagamenon Brito como uma designação pejorativa ao movimento de
produtores musicais, compositores e cantores baianos, que a partir de estilos distintos criou em torno
do carnaval, um mercado autônomo e extremamente bem sucedido de produção e
consumo de gravações, eventos e grupos musicais. A expressão propalada por
Brito cuja principal preocupação
“crítica” era depreciar os empreendimentos culturais baianos de sucesso, acabou
sendo adotada pela mídia nacional que não se apercebeu ou simplesmente ignorou
o caráter deletério da designação. Registre-se a indignação de Dorival Caymmi
pela aplicação da palavra “axé”, sagrada no âmbito do Candomblé, a esse
universo nada santo. Como acabou sendo adotada por todos, vamos utilizá-la aqui
para designar as canções cujas letras
integravam o recital.
[9] São inúmeras as conquistas internacionais do
axé-music, como por exemplo: excussões internacionais de Margareth Menezes com
David Byrne (Talking Heads) e as gravações do Olodum com Paul Simon e Michael
Jackson; já as gravações de Daniela Mercury em um certo momento venderam mais
em vários países europeus do que ídolos mundiais como Madonna por exemplo;
também Carlitos Marrón isto é, Carlinhos Brown teria realizado diversas
apresentações para centenas de milhares de pessoas em várias cidades da
Espanha.
[10]
A partir dos anos 80 com o surgimento do axé,
Salvador consolidou-se como uma “praça” para a realização de shows e eventos de
grandes proporções. De acordo com números divulgados na imprensa não são raras
as platéias de 50.000 espectadores em uma única noite de música. Também
não é exagero pensar que em uma fase
“normal” (isto é: sem nenhum “mega-sucesso” em cartaz) o Teatro da Bahia (a
soma de todas as peças) não obtenha esse número de espectadores pagantes em uma
temporada de um ano inteiro.
[11] 1997 – 2001: Elenco Básico: Cyria Coentro, Jackyson Costa,
Maria Menezes, Ricardo Bittencurt, Zéu Britto. Substituições: João Miguel,
Najla Andrade, Aycha Marques. Roteiro/Iluminação/Direção: Paulo Dourado. Assistente
(roteiro/iluminação/direção): João Sanches. Cenografia: Joãozito (Blade
Design). Figurinos: Roberio Sampaio. Produção: Jerry Burgos. 1989 – 1992:
Elenco Básico: Cyria Coentro, Jackyson Costa, Meran Vargens, Ricardo
Bittencourt. Participações: Regina Dourado, Iami Rebouças, Maria Menezes, Joana
Schnitzmann, Arly Arnaud, Mariza Baruch, Eliana Pedroso, Evandro Néri, Gideon
Rosa, Osvaldo Mil. Roteiro/Iluminação/Direção: Paulo Dourado.
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